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Tribunal de Guimarães: Matar por ciúme não é um "motivo fútil" | Comunicado Associação ACEGIS

O “ciúme” não pode servir de justificação ou atenuante para atos ou crime de violência doméstica. A única naturalização presente no acórdão do Tribunal de Guimarães é novamente a normalização da violência que tem servido para legitimar a prática da violência doméstica.

 

A descrença no sistema judicial e nos tribunais, onde procuramos a aplicação justa e imparcial da lei, é particularmente prejudicial, uma vez que traz consigo o efeito dissuasor na apresentação de queixa por parte das vítimas de violência doméstica face à impunidade dos agressores.

O Tribunal da Relação de Guimarães suspendeu a pena de um jovem condenado a seis anos de prisão por agredir à facada a ex-namorada por ciúme, motivo que, “embora reprovável, não pode ser qualificado como fútil”, refere o acórdão. 

 

Na decisão da primeira instância, a 06 de dezembro de 2017, o arguido foi condenado a seis anos de prisão efetiva, por homicídio qualificado na forma tentada, mas a Relação, por acórdão de 09 de abril, decidiu aplicar-lhe cinco anos, com pena suspensa, por homicídio simples.

“o arguido não agiu determinado por motivo fútil, revelador de uma especial censurabilidade ou perversidade, não ocorrendo, por isso e contrariamente ao decidido pela primeira instância, a circunstância-padrão qualificativa do homicídio prevista na al. e) do n.º 2 do art. 132º do Código Penal.”

O Tribunal da Relação de Guimarães considerou ter havido uma vontade “ostensiva” do arguido de matar a ex-namorada, mas sublinhou que “o motivo tenha sido muito reprovável, não se deve qualificá-lo como «fútil», isto é, irrelevante ou insignificante, ou como «torpe», ou seja, vil e abjeto.”

Salientando que muito embora o comportamento do arguido “ao tentar atentar contra a vida da assistente, foi bastante censurável e completamente desproporcionada à situação”.

No entanto, o tribunal não só justifica bem como desculpabiliza o crime de violência doméstica, atendendo ao “contexto global em que se inseriu, tal motivação não revela características que a façam considerar como tendo sido fútil”.

 

No dia dos factos, a vítima ter-lhe-á confessado que tinha outro homem, pelo que o arguido lhe desferiu um golpe com uma faca de cozinha, com 12 centímetros de lâmina, atingindo-a na zona central do tronco, entre o peito e o abdómen.

Para o tribunal, o arguido teve inequívoca intenção de matar, o que só não aconteceu porque acabou por ser prontamente assistida por terceiros.


 

Discursos de atenuação da gravidade do comportamento do agressor, como o “ciúme”, por atos da vítima, que  “mantinha outro relacionamento afetivo”,  “inviabilizado o pretendido reatamento do namoro”, têm servido para desculpabilizar, legitimar e naturalizar a violência masculina.

 

Apesar das reformas legais progressistas e de uma maior consciencialização da sociedade, continuam a ser perpetuadas as situações de subjetividade presente em decisões judiciais, que reforçam a legitimidade e a atenuação de atos ou crimes de violência doméstica ou no namoro.

Infelizmente continuamos a identificar decisões judiciais que desvalorizam a violência nas relações de intimidade e que têm o efeito perverso na descrença do sistema judicial que deve proteger as vítimas.

A Associação ACEGIS entende que esta é mais uma decisão judicial que demonstra que o caminho mais difícil no combate à violência doméstica encontra-se no seio da comunidade jurídica, nos tribunais.

Não podemos deixar de notar que o discurso e a argumentação judicial mantém-se fiel a certos modelos sociais que regulam as relações de género, assente numa visão patriarcal e de dominação simbólica masculina, que tem servido para tolerar, aceitar e desculpabilizar a normalização da violência doméstica.

Desde os vestígios patriarcais na argumentação, a decisões judiciais que desvalorizam a violência doméstica, a medidas de coação que não protegem as vítimas, à atenuação de penas por atos e crimes de violência, aumenta o sentimento de impunidade e descrença no sistema judicial.

Discursos de atenuação da gravidade do comportamento, de atos ou crimes de violência doméstica, colocam em causa a garantia do princípio da igualdade, dos direitos processuais, da imparcialidade e a eficácia da justiça e dos tribunais.

A descrença no sistema judicial e nos tribunais, onde procuramos a aplicação justa e imparcial da lei, é particularmente prejudicial, uma vez que traz consigo o efeito dissuasor na apresentação de queixa por parte das vítimas de violência doméstica face à impunidade dos agressores.

Esta constatação faz-nos equacionar uma dupla vitimização: a perpetrada pelo agressor e a cometida pelos tribunais, que deviam assegurar a proteção das vítimas.

Os tribunais não só afirmam o poder instrumental e criminal, mas igualmente o poder simbólico de remover os obstáculos que impedem as mulheres de obter proteção jurídica nos casos de violência doméstica.

 

O que o Tribunal da Relação de Guimarães acaba por fazer, com esta decisão, é aceitar, desculpabilizar e naturalizar a normalização da violência contra as mulheres.  O “ciúme” não pode servir de justificação ou atenuante para atos ou crime de violência doméstica.

A única naturalização presente no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães é novamente a normalização da violência que tem servido para legitimar a violência doméstica e no namoro.

<p><strong>Não podemos ficar indiferentes ao teor de decisões judiciais que têm o efeito perverso na descrença do sistema judicial e das leis que devem proteger as mulheres vítimas de violência doméstica.</strong></p> <p> </p> <p>Cada vez que a justiça falha estamos a validar uma série de preconceitos e estereótipos de género.</p> <p><strong>Cada vez que a justiça falha estamos a reconhecer, a aceitar, a desculpabilizar, a normalização da violência contra as mulheres e a tolerar o homicídio nas relações de intimidade.</strong></p> <p> </p> <p>A única forma de reduzir drasticamente os números da violência contra as mulheres é através da denúncia e na crença no sistema judicial.</p> <h5></h5> <h5 style="text-align: center;">Lisboa,  24 de abril de 2018</h5> <p> </p> <h5 style="text-align: center;">Susana Pereira</h5> <h5 style="text-align: center;">Fundadora da Associação ACEGIS</h5>
Comunicado redigido a 24 de abril de 2018 e publicado a 27 de abril de 2018. Face a uma anomalia técnica, motivada por uma sobrecarga no servidor, o artigo foi atualizado e republicado a 04 de maio de 2018.
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