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Discriminação racial e étnica: entre perceções e a realidade

Precisamos de falar sobre o racismo. E precisamos de agir. Quando há vontade, a mudança é possível. Congratulo-me por viver numa sociedade que condena o racismo, mas não nos devemos ficar por aí. O lema da nossa União Europeia é «Unida na diversidade». Cabe-nos estar à altura destas palavras e dar expressão concreta ao seu significado.

A discriminação em razão da raça ou origem étnica é proibida na União Europeia (UE), no entanto, continua a existir na nossa sociedade. A luta contra o racismo requer um forte empenho conjunto a nível da UE e a nível nacional. E por isso, a 18 de setembro de 2020, a Comissão publicou o seu plano de ação para intensificar a ação contra o racismo na União Europeia, que estabelece uma série de medidas a alcançar nos próximos cinco anos.

No seu discurso sobre o estado da União 2020, a Presidente Ursula von der Leyen anunciou um novo plano de ação da UE contra o racismo que estabelece um conjunto de medidas para os próximos cinco anos. A Comissão assegurará, nomeadamente, que os Estados-Membros aplicam integralmente a legislação da UE na matéria e, se necessário, reforçam o seu quadro jurídico. 

 

O plano de ação da UE contra o racismo para o período 2020-2025 define um conjunto de medidas para combater o racismo com a ajuda do direito da UE e recorrendo a outros meios – trabalhando com os Estados-Membros, incluindo os serviços policiais nacionais, os meios de comunicação social e a sociedade civil, tirando partido das ferramentas da UE, atuais e futuras, e refletindo sobre a situação ao nível dos recursos humanos da própria Comissão

 “Os progressos na luta contra o racismo e o ódio são frágeis – conquistam-se muito a custo, mas perdem-se muito facilmente. Portanto, é altura de mudar. Construir uma União verdadeiramente antirracista – que passe da condenação à ação.”

Contexto Europeu

O artigo 19.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) estabelece a base jurídica para combater a discriminação em razão do sexo, raça ou origem étnica, religião ou crença, deficiência, idade ou orientação sexual. O Conselho da União Europeia tem vindo a adotar atos legislativos que asseguram proteção contra a discriminação em razão do sexo e da origem racial ou étnica nas esferas mais importantes da vida dos cidadãos. Entre estas incluem-se o emprego e o trabalho, a educação, a proteção social e o acesso a bens e serviços, incluindo a habitação.

Porém, discriminação e as desigualdades por diferentes motivos continuam a ser uma realidade quotidiana em toda a Europa. Os resultados de inquéritos da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA), sobre Minorias e Discriminação na União Europeia (EU‑MIDIS II), publicado em dezembro de 2017, os inquéritos da FRA «Ser negro na União Europeia» (publicados em  2018 e 2019) e o Eurobarómetro de 2019 discriminação na UE, confirmam essa realidade. 

As pessoas vítimas de discriminação raramente denunciam os casos às autoridades, conforme demostram também os vários inquéritos da FRA, apesar de todos os Estados-Membros da UE disporem de organismos nacionais de promoção da igualdade, conforme previsto na Diretiva relativa à igualdade racial (2000/43/CE).

O artigo 21.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia reconhece o direito a não sofrer discriminação em razão, designadamente, da raça, da origem étnica ou social, da religião ou de convicções, opiniões políticas ou outras.

Entre percepções e a realidade da discriminação racial

A persistente desvalorização do fenómeno  do racismo, dos discursos de ódio e intolerância são muito comuns. O historial das injustiças cometidas contra as pessoas africanas e/ou de origem africana – nomeadamente a escravatura, o apartheid racial, os genocídios no contexto do colonialismo europeu e do comércio de escravos –continua a não merecer amplo reconhecimento. Porém, a característica mais nefasta da discriminação racial reside precisamente na sua negação, na distorção dos factos históricos e científicos, cada vez mais alimentados por movimentos autoritários, populistas e extremistas, que conduzem à fragmentação da sociedade e são uma ameaça direta à nossa democracia.

O racismo, a discriminação e a xenofobia estão a ser generalizadas e há uma resistência renovada na defesa das liberdades e garantias individuais que têm por base os direitos humanos, a igualdade e a dignidade humana. 

 

O assédio e a violência racista são ocorrências comuns e generalizadas em toda a Europa

 A discriminação em razão da raça ou origem étnica é proibida na União Europeia. No entanto, a discriminação e o preconceito persiste na sociedade. As pessoas, devido à cor da sua pele, crença religiosa ou etnia, continuam a ser vítimas de discriminação, assédio e preconceitos enraizados, e mais de metade dos europeu (59%) considera tratar-se de uma prática comum e generalizada. (Eurobarómetro 2019 – Discriminação na UE28)

Segundo a Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA), 45% das pessoas de origem norte-africana, 41% dos membros da comunidade cigana e 39% dos descendentes de pessoas vindas da África Subsariana foram já vítimas de discriminação, e 11 % dos judeus já se sentiram discriminados pelo facto de pertencerem à comunidade judaica.

1 em cada 5 pessoas negras e aproximadamente 3 em cada 10 judeus já foram vítimas de discriminação

41% pessoas ciganas e 39% de pessoas Ascendência da África subsariana já foram vítimas de discriminação.

Quase um em cada três afrodescendentes (30%) foi alvo daquilo que consideram ser assédio racista

Ser negro na Europa é frequentemente sinónimo de racismo, más condições de habitação e maus empregos

De acordo com o relatório da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA) a população negra na Europa enfrenta dificuldades inaceitáveis em coisas tão simples como encontrar um sítio para viver ou um emprego digno devido à cor da sua pele.

Cerca de um quarto dos negros sofreram discriminação racial no trabalho ou ao procurar trabalho. Os jovens negros são especialmente vulneráveis; em alguns países, até 76% não trabalhavam, não estudavam nem frequentavam qualquer curso de formação, em comparação com 8% da população geral.

 

A discriminação racial é uma realidade em todos os aspetos da vida quotidiana

De acordo como o inquérito da FRA, 39% dos/as inquiridos/as sentiram que foram alvo de discriminação racial nos cinco anos anteriores ao inquérito, e um em cada quatro,  24% nos 12 meses anteriores ao inquérito.

Um quarto dos inquiridos, 27% identifica a cor da pele como o principal motivo de discriminação na procura de trabalho, no trabalho, na educação ou na habitação nos cinco anos anteriores ao inquérito, com taxas mais elevadas para os homens (30%) do que para as mulheres (24%). O segundo motivo de discriminação mais vezes identificado é a origem étnica (19%). Cerca de 5% sentiram-se discriminados/as devido à sua religião ou crenças religiosas.

A habitação é outro problema: um em cada cinco inquiridos afrodescendentes (21%) sentiu ser alvo de discriminação racial no acesso à habitação nos cinco anos anteriores ao inquérito.

Muitos dos entrevistados/as afirmam que foram impedidos de alugar um alojamento, por um proprietário particular, devido à sua origem racial ou étnica (14%). Isto é especialmente problemático, uma vez que apenas 15% possuem  propriedades, contra 70% da população em geral da UE.  Além disso, 45% vivem em habitações sobrelotadas em comparação com 17% da população em geral, o que aponta para a necessidade de os Estados-Membros melhorarem a qualidade da habitação e erradicar a exclusão habitacional.

Por último, 12% das pessoas inquiridas vive em situação de carência habitacional, o que inclui viver numa residência sem chuveiro e sanita ou numa residência demasiado escura, com as paredes ou as janelas degradadas ou com infiltrações no telhado.

Um em cada cinco inquiridos afrodescendentes (21%) sentiu ser alvo de discriminação racial no acesso à habitação

45% vivem em habitações sobrelotadas e 12% das pessoas inquiridas vive em situação de carência habitacional

14% afirmam que foram impedidos de arrendar alojamento por um senhorio privado devido à sua origem racial ou étnica

A participação no mercado de trabalho é desigual

Os indicadores relativos à participação no mercado de trabalho mostram que os/as afrodescendentes costumam ter empregos de baixa qualidade e não correspondem ao seu nível de educação. A taxa de trabalho remunerado entre aqueles com um diploma de ensino superior é geralmente mais baixa do que a da população em geral.

Um em cada quatro inquiridos (25%) sentiu ser alvo de discriminação racial durante a procura de emprego nos cinco anos anteriores ao inquérito.  Oito em cada dez inquiridos, 82% consideram que a cor da pele ou o aspeto físico são a principal razão para a discriminação durante a procura de emprego.

Um quarto dos inquiridos afrodescendentes trabalha em profissões pouco qualificadas (26%), que consistem geralmente em trabalhos manuais que envolvem esforço físico. O dobro dos inquiridos com um diploma do ensino superior (9%) estão empregados em profissões não qualificadas em comparação com os membros da população geral com o mesmo nível de habilitações (5%).

Acabar com a discriminação racial na lei criminal e garantir que a brutalidade policial é punida

A discriminação racial é uma realidade em todos os aspetos da vida.  O segundo inquérito da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA) sobre migrantes e minorias (EU-MIDIS II), revela que, após 20 anos após a adoção de leis da UE que proíbem a discriminação, os afrodescendentes na UE ainda são alvo de preconceito e exclusão generalizados e enraizados.

Quase um em cada três dos inquiridos/as afrodescendentes (30%) afirmam ter sido vítimas de assédio racial nos últimos cinco anos que precederam a realização do inquérito; e um em cada cinco (21%) foi vítima deste tipo de assédio nos 12 meses. 

As experiências de assédio racista envolvem mais frequentemente sinais não verbais ofensivos (22%) ou comentários ofensivos ou ameaçadores (21%), seguidos de ameaças de violência (8%). No entanto, apenas 14% dos incidentes mais recentes de assédio racista foram denunciados à polícia ou a outros serviços (16% dos incidentes contra mulheres e 12% dos incidentes contra homens), o que significa que a esmagadora maioria dos incidentes nunca foi denunciado.

No que diz respeito à violência racista, 5% dos inquiridos afirmam terem sido vítimas de um ataque racista nos cinco anos anteriores ao inquérito; 3% afirmam ter sido vítimas de um ataque racista nos 12 meses anteriores ao inquérito

O caso George Floyd

 
Em 2020, na sequência da morte de George Floyd milhares de pessoas saíram à rua por todo o mundo, e em várias  cidades europeias em em solidariedade com os protestos nos Estados-Unidos insurgindo‑se contra o racismo e manifestando o  apoio ao movimento «Black Lives Matter». 
Os protestos expuseram o amplo alcance do racismo sistémico e estrutural nas sociedades democráticas, particularmente a questão da violência policial e no acesso à justiça criminal das vítimas. E impulsionaram o movimento contra o racismo de que são alvo as pessoas negras e as minorias étnicas, lançando o debate sobre o racismo enraizado em estruturas historicamente repressivas do colonialismo e do comércio transatlântico de escravos.
 
 
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Porém, também existem sinais muito concretos que a violência policial contra pessoas negras não são exclusivas dos Estados-Unidos. O racismo, a discriminação e o uso de força excessiva e letal pela polícia também ocorrem na Europa. 

De acordo com o relatório da FRA, “Ser Negro na UE”,  um em cada dez inquiridos, 11% das vítimas de violência racista afirma que o autor foi um agente da autoridade. No entanto, a maioria (63%) das vítimas de ataques físicos racistas por agentes da polícia, não denunciaram o incidente a nenhuma organização, quer por considerarem que a denúncia não iria mudar nada (34%), quer por não confiarem ou terem medo da polícia (28%).

As interpelações da polícia são frequentemente sentidas como baseadas no perfil racial.  Um grandes números de afrodescendentes afirmam percecionar as interpelações como sendo baseadas no perfil racial, uma prática ilícita que compromete a sua confiança nas autoridades de aplicação da lei.

 

Violência motivada pelo racismo

Apenas 14% dos incidentes mais recentes de assédio racista foram denunciados à polícia ou a outros serviços

64%das vítimas de violência racista não comunicaram à polícia ou outra organização o incidente

A maioria (63%) das vítimas de ataques físicos racistas por um agente da polícia não denunciou o incidente a ninguém

As interpelações da polícia são frequentemente sentidas como baseadas no perfil racial

Um quarto de todas as pessoas de ascendência africana (24%) inquiridas pela FRA tinha sido alvo de controlo policial nos cinco anos que precederam o inquérito,  destas  41 % destas pessoas consideraram que o controlo mais recente de que tinham sido alvo se ficava a dever ao perfil racial.
 
Um em cada 10 inquiridos (11%) foi interpelado pela polícia nos 12 meses anteriores ao inquérito, com quatro em cada 10 a caracterizarem a interpelação mais recente como tendo sido baseada no perfil racial (44%). Os homens têm três vezes mais probabilidades de ser interpelados (22%) do que as mulheres (7%) e são mais suscetíveis de percecionar a interpelação mais recente como baseada no perfil racial (44%) do que as mulheres (34%).
 

A baixa taxa de denúncia de crimes de ódio com um motivo racista constitui um sério obstáculo à aplicação da lei e à visibilidade do próprio fenómeno.  A recente estratégia Europeia no domínio dos direitos das vítimas reconhece que as vítimas de crimes oriundas de comunidades ou minorias desfavorecidas ou vulneráveis podem ter pouca confiança nas autoridades públicas, o que as leva a não denunciarem crimes.

Porém, todos os esforços para combater os ódio, o preconceito, o racismo e a discriminação só podem ter êxito dando visibilidade às vítimas, assegurarem o direito à justiça,  e que todos  os crimes de discriminação racial são registados, investigados, julgados e punidos judicialmente. 

O racismo é terreno fértil para o autoritarismo, a opressão a negação dos direitos humanos

A dimensão dos protestos globais na sequência da morte de George Floyd demonstraram que os Governos não podem continuar a ficar calados sobre o racismo sistémico.

O problema do racismo estrutural e institucional da Europa vai muito além dos discursos de ódio que muitas vezes fazem ecoar as páginas dos jornais e as redes sociais. É mais grave do que isso, democratizou-se no discurso político e institucional, encontrou terreno fértil nos movimentos autoritários e infiltrou-se na sociedade.

O racismo é terreno fértil para o autoritarismo, a opressão e a negação dos direitos humanos. O ressurgimento de movimentos políticos autoritários e populistas nas democracias europeias colocou em evidência os riscos de permanecer em silêncio. Porém, estes movimentos só têm sucesso porque o discurso racial é baseado em preconceitos racistas inconscientes ou crenças racistas explícitas que ainda existem na sociedades e nas instituições democráticas. 

Por isso, as democracias europeias devem fazer um trabalho urgente no combate ao racismo sistémico, estrutural e históricos nas suas instituições. De fazer um amplo reconhecimento do historial de injustiças cometidas durante o colonialismo europeu e refletir sobre a memória do passado. De encetar um trabalho urgente em combater todas as formas de discriminação, racismo e preconceito, que incute o ódio e a violência na sociedade.

Porque a característica mais nefasta da discriminação racial reside precisamente na sua negação, na distorção dos factos históricos e científicos, que conduzem à fragmentação da sociedade e são uma ameaça direta às nossas democracias.

Desistir destes princípios enfraqueceria fatalmente a credibilidade das instituições democráticas, na defesa do Estado de direito e dos direitos humanos. Não podemos continuar em silêncio e negação. Não podemos continuar a desvalorizar os discursos de ódio, da intolerância e do preconceito.

Associação para a Cidadania, Empreendedorismo, Género e Inovação Social

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